Eu vou ter uma filha

Posted by brandmedia
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Esses dias eu soube que vou ter uma filha. O nome dela vai ser Lua. Sei que Lua não é um nome comum, mas não muitas coisas são mais bonitas do que a lua. Muito antes de Lua sequer ser concebida, eu e minha esposa (então namorada) já queríamos a Lua. Imaginávamos seus traços físicos, sua personalidade, e todas as coisas de menina. Minha esposa adora anéis, pulseiras, perfumes e tudo que é tipicamente feminino. A nossa felicidade não podia ser maior.

Mas o mundo não é gentil com as mulheres. O homem eleito democraticamente para conduzir a nação mais poderosa do mundo é conhecido por assediar mulheres. O perfil, infelizmente, não é exceção. De acordo com a ‘UN Women’, uma em cada dez mulheres da União Européia afirmam ter experimentado algum tipo de assédio virtual (emails ou mensagens sexualmente ofensivos, ou investidas indesejadas em redes sociais) a partir dos 15 anos de idade. No Brasil, a situação não é melhor: em 2015, foi registrado um caso de violência contra a mulher a cada 7 minutos, e um artigo no site da ONU, de 2016, alerta que a taxa de feminicídio no Brasil é a quinta maior do mundo. Segundo os dados mais recentes do Fórum Econômico Mundial, o Brasil ocupa a 79ª colocação, em termos de igualdade de gênero, num total de 144 países analisados, atrás do Cazaquistão, Zimbabue e Venezuela.

O mundo é injusto e cruel pra todos, mas é muito pior para as mulheres. Quando não são tomadas por puro objeto sexual, devem frequentemente se submeter a posições inferiores no mercado de trabalho, com salários mais baixos, descrença e incompreensão. Mas o que se sabe sobre ser mulher?

Em psicanálise, é bem conhecido o momento quando Freud confessou à sua discípula e analisanda Marie Bonaparte que “a grande pergunta que não foi nunca respondida e que eu não fui capaz ainda de responder, apesar de meus trinta anos de pesquisa sobre a alma feminina é – O que quer uma mulher?” (Nunes, 2011). De fato, o modelo falocêntrico sugerido por Freud em seus ‘Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade’, em1905, não demorou para ser contestado, principalmente após a ascensão das mulheres ao mercado de trabalho no período entre guerras e, no meio psicanalítico, pela formação de mulheres médicas e analistas, marcadamente de orientação kleiniana. Segundo Roudinesco e Plon (1998, p.707),

a partir  de  1945,  foi  em  torno  do  livro  de Simone de Beauvoir, ‘O segundo sexo’,  e das  teses de  Jacques  Lacan, Michel Foucault e Jacques Derrida que o debate sobre a sexualidade feminina, em particular nos Estados Unidos, evoluiu para uma interrogação mais radical sobre a diferença entre os sexos e, mais tarde, sobre a distinção entre o sexo e o gênero (Roudidesco e Plon, 1998, p.707).

Mais tarde, em 1973, ao final de seu ensino, e de sua vida, Lacan utilizou-se da lógica e da ideia de ‘matema’ para sugerir as fórmulas da sexuação e tentar superar o impasse freudiano. Assim, se, para Freud, a castração é um fato universal, “Lacan dá um passo adiante e teoriza que a mulher é não-toda inscrita na lógica fálica. Deste modo, ele dá um lugar para o feminino enquanto radicalmente distinto do masculino, no sentido de que escapa à lógica fálica” (Gama, 2008). Então, “as mulheres possuem um gozo suplementar ao fálico, um gozo Outro, portanto, não capturado pelo significante; um excesso de gozo não civilizado. Em relação a este gozo feminino, podemos dizer que ele é fora do discurso, que ele é impossível de ser dito”. Daí o aforismo lacaniano: ‘A mulher não existe’. Afinal,

dado que a lógica fálica não dá conta do que é ser uma mulher, depreendemos que, para a menina, a travessia do Édipo não lhe responde o que é ser uma mulher. No entanto, é importante deixar claro que ao final do Édipo a menina reconhece que ela e sua mãe não têm o falo. Este reconhecimento é crucial para a sua inscrição na partilha dos sexos. Como assinala Lacan, é na medida em que o pai se torna o Ideal do eu que se produz na menina o reconhecimento de que ela não tem falo (Gama, 2008).

Hoje, minha pequena Lua é ainda do tamanho de um pêssego, e está alheia a tudo isso. Mas ela vai nascer em breve, neste mundo comandado por homens confusos e rancorosos. E de uma ignorância ainda grande demais sobre a feminilidade e o feminino. Eu, como um homem que virou pai, só posso desejar que este pouco conhecimento que temos pode ser um dia o ponto de partida para um mundo menos injusto a todas as mulheres. E também à minha filha Lua.

Estevam Holpert, 4 de abril de 2017.

 

Bibliografia:

GAMA, Vanessa Campbell. Das fórmulas da sexuação ao Empuxo-À-Mulher. Asephallus, Rio de Janeiro, 3, n.6, 2008. Available from http://www.isepol.com/asephallus/numero_06/artigo_05.htm, acesso on 01Apr.2017.

NUNES, Silvia Alexim. Afinal, o que querem as mulheres? Maternidade e mal-estar. Psicol. clin.,  Rio de Janeiro ,  v. 23, n. 2, p. 101-115,    2011 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652011000200007&lng=en&nrm=iso>. access on  01  Apr.  2017.  http://dx.doi.org/10.1590/S0103-56652011000200007.

ROUDINESCO, Elizabeth e PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. 1998.

Websites::

nacoesunidas.org

//reports.weforum.org/global-gender-gap-report-2016/rankings/

www.estadao.com.br

www.unwomen.org/